divendres, 23 de març del 2012

O haver


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura,
essa intimidade perfeita com o silêncio,
resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
–perdoai! Eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo,
essa mão que tateia antes de ter, esse medo
de ferir tocando, essa forte mão de homem 
cheia de mansidão para com tudo o que existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos,
essa inércia cada vez maior diante do infinito,
essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
da matéria em repouso, esa angústia da simultaneidade do tempo,
essa lenta decomposição poética em busca de uma só vida, uma só morte,
um só Vinícius.

Resta esse coração queimando como um círio
numa catedral em ruínas, essa tristeza diante do cotidiano; 
ou essa súbita alegria ao ouvir na madrugada
passos que se perdem sem memória.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza,
essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido,
essa imensa piedade de si mesmo,
essa imensa piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância 
súbitamente desentranhada de pequenos absurdos,
essa tola capacidade de rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
e essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, 
essa vagueza de quem sabe que tudo já foi, como será, como virá a ser.
E ao mesmo tempo esse desejo de servir,
essa contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar, de transfigurar a realidade,
dentro de essa incapacidade de aceitá-la tal como é,
e essa visão ampla dos acontecimentos,
e essa impressionante e desnecessária presciência,

e essa memória anterior de mundos inexistentes,
e esse heroísmo estático,
e essa pequenina luz indescifrável a que às vezes os poetas
chamam de esperança.





Resta essa obstinação em fugir do labirinto
na búsqueda desesperada de uma porta quem sabe inexistente,
e essa coragem indizível diante do grande medo, 
e ao mesmo tempo, este terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos,
de refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história,
resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho,
essa vaidade de não querer ser príncipe se não do seu reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento,
esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável,
resta esse eterno morrer na cruz dos seus braços,
e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte,
 esse fascínio pelo momento a vir,
quando, emocionada, ela virá me abrir a porta,
como uma velha amante,

                                             sem saber que é a minha mais nova namorada.



VINÍCIUS DE MORAES









«O haver», Voz: Vinícius de Moraes / Viol
ão: Edu Lobo